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Patricio Miguel Trujillo Ortega


23 de junho de 2012

Még kér a nép - Salmo Vermelho


Még kér a nép – Salmo Vermelho, Drama – Guerra – Musical, 87 minutos, 1972, Hungria.

Direção: Miklós Jancsó.

Salmo Vermelho é uma belíssima produção húngara de 1972 do cineasta Miklós Jancsó que, em 1972, ganhou o Festival de Cannes como melhor diretor e, em 1990, ganhou o Leão de Ouro do Festival de Veneza pelo conjunto de sua obra.

O filme Salmo Vermelho é uma obra na qual a música, a coreografia, as personagens e o movimento dinâmico da câmera se misturam criando uma produção fascinante cheia de símbolos, fazendo dela, talvez, umas das melhores longa-metragem “pro-socialismo”.

Quando falamos de “pro-socialismo”, a primeira ideia que temos é que pode se tratar de um filme de “propaganda” política, algo comum não somente no cinema, mas também em outras artes; porém, as obras de “propaganda política” não sobrevivem ao tempo porque, na maioria das vezes, são sacrificadas em sua produção para “vender” uma ideologia.

Mas este não é o caso de Salmo Vermelho, porque o movimento da câmera, junto com a coreografia e o próprio espaço-tempo da ação, fazem deste filme uma “obra poética” impactante, seja qual for a ideologia do espectador.
Salmo Vermelho
Salmo Vermelho: uma obra poética
Salmo Vermelho é uma alegoria dos ideais socialistas de construir uma sociedade justa e do enfrentamento do proletariado com as forças do poder, representados no filme pelos militares, pela igreja e pela burguesia ou nobreza.

Para entender melhor o filme, vamos analisar algumas cenas do ponto de vista da câmera, das personagens, das músicas, da história narrada, do espaço-tempo e da crítica política, mas tudo através da linguagem cinematográfica que fez deste filme um dos melhores de Miklós Jancsó.

Os quatros primeiros elementos que chamam a atenção em Salmo Vermelho são: o tempo, o espaço, as personagens e os movimentos da câmera.

O diretor opta por construir a história através de vários blocos de planos sequenciais longuíssimos, nos quais a câmera está sempre em movimento, procurando as personagens conforme estas vão construindo a história, até o momento em que desaparecem e dão lugar a outras personagens. É um processo cíclico, dinâmico e sincronizado com cantos, hinos e danças.
Salmo Vermelho: a queima dos alimentos
Hinos e danças
Por outro lado, as personagens não têm nome. Elas são conhecidas e reconhecidas por seus rostos e suas ações; há, inclusive, algumas personagens que depois de morrer, levantam-se e voltam a andar.

A história transcorre em um cenário único: um campo, onde um grupo de camponeses reivindica seus direitos pela posse da terra, da justiça, da igualdade, da liberdade. Aparentemente, o cenário não oferece nada de especial; mas a coreografia dos atores dá vida a esse lugar vazio.

Sabemos que a história do filme acontece em 1898, já que essa data é mencionada apenas uma vez, no minuto 25; porém, é interessante reconhecer que o diretor optou por um vestiário ambivalente que pode ser de1898 ou qualquer outra época mais presente (para a data da realização do filme) tanto na roupa dos camponeses quanto na dos soldados, fazendo assim uma história atemporal.

Pode-se resumir a história do filme em poucas linhas: um grupo de camponeses querem justiça social e, por acreditarem nos ideais socialistas, não retrocedem frente ao poder dos nobres, dos militares e dos religiosos que desejam que a sociedade continue nos modelos tradicionais (leia-se, a terra e a riqueza para poucos: os amos e senhores da nação). O confronto é permanente e depois de que os camponeses são massacrados pelos militares e humilhados pela igreja, ainda têm o poder de iniciar a revolução socialista, eliminando os seus inimigos assassinos.
Salmo Vermelho é um filme lírico

Embora as relações das personagens sejam tensas, Salmo Vermelho é um filme lírico graças a sua narrativa de cantos e danças, e os movimentos dos atores estão sincronizados com esse recurso; por um lado, há um grupo de músicos que com seus instrumentos tradicionais tocam constantemente músicas regionais alegres e marchas socialistas; por outro lado, as personagens se movem em círculos e a câmera acompanha os seus movimentos como se fosse um balé; além disso, os camponeses estão o tempo todo juntos, abraçados, apoiando-se, agrupando-se quando necessário e espalhando-se pelo campo quando é imperativo, mas sempre formam uma unidade. É a simbologia do poder da união para estar preparado para o confronto.
Os camponeses não se intimidam frente ao soldados
Como falamos anteriormente, as relações das personagens são tensas desde o primeiro minuto: um grupo de camponeses está sentado no chão e, ao redor deles, há um grupo de soldados montados em cavalos que se movem constantemente, em círculos. A imagem dos camponeses é mostrada em close-up e o movimento dos soldados que atravessam a imagem dá a sensação de angústia, de opressão. Esse movimento de soldados a cavalos ocorrerá na maior parte do filme.

Salmo Vermelho: Todos Juntos; Sempre Juntos
No grupo de camponeses há dois líderes: um homem e uma mulher que estão o tempo todo lembrando aos demais os preceitos do socialismo, incluindo a leitura de textos de Friedrich Engels. A mulher, principalmente, procura manter o grupo unido e pede que todos estejam juntos.

Desde o primeiro instante há o confronto de camponeses e autoridades, primeiro com o “intendente” que tenta fazer com que os camponeses acatem as suas decisões e logo com os soldados. Enquanto as autoridades tentam se impor, os camponeses se apoiam com cantos e danças, seja com alegres músicas tradicionais ou com canções ideológicas, como a primeira a ser cantada que fala assim: “Amigos, cantemos todos juntos o triste e sagrado canto do trabalho. Só os ricos têm pátria. Os vales e os campos lhes pertencem...”.

Em resposta à “rebeldia” dos camponeses, o “intendente” queima os alimentos destes e as mulheres desafiam os soldados chamando-lhes de covardes ao mesmo tempo em que os exortam para que se juntem à causa dos camponeses.
Um elemento constante em Salmo Vermelho é a utilização de elementos da igreja para mostrar como esta instituição é solidária com a nobreza para manter o “status quo”: o enriquecimento de uns e a miséria de outros. A crítica a esta instituição é feita também com preces, ações e com simbologias cristãs nessa luta dos camponeses socialistas contra o poder representado pelos soldados, autoridades, religiosos, nobres, burgueses.

Há um par de cenas que ajudam a ilustrar o que estamos falando.

No minuto onze, os camponeses fazem um juramento ao ritmo de uma música tradicional alegre, como provocação a um grupo de soldados que chegam ao local atirando para o alto. O juramento dize: “Nós, socialistas, juramos por Deus que cada um de nossos atos servirá fielmente aos Seus. Que nunca cobiçaremos os bens do camarada. Que estaremos dispostos a morrer por nossos camaradas, nossos irmãos. E que Deus venha nos ajudar”.

No minuto trinta e três, há um close-up de estandartes religiosos e uma mesa cheia de comida: uvas, ovos, tomates, etc., até que a mulher líder, identificada sempre com sua roupa azul, pega um pão grande e o levanta devagar. Ela caminha com o pão e a câmera, em close-up, acompanha os passos da mulher. É uma cerimônia religiosa de comunhão até que aparece um padre e fala para os camponeses: “Eis aqui o pão pelo qual pecam ao se rebelarem; mas quando a noite chegar, o terror cairá sobre eles. E tremerão diante da cólera de Deus”.
Salmo Vermelho
Mas os camponeses não se intimidam com as “profecias divinas e celestiais dos representantes de Deus” e obrigam ao padre a entrar na igreja enquanto ele discursa contra as ideias socialistas. A última frase do padre antes de entrar na igreja, que logo será incendiada pelos camponeses é: “Quem está nu odeia a quem está vestido”. Logo, a imagem, em um plano de conjunto, mostra um grupo de mulheres, lideradas pela mulher líder, rezando: “Da orfandade, nos salve, Senhor. Da viuvez, nos salve, Senhor. Da emigração, nos salve, Senhor. De comer beterraba podre, nos salve, Senhor. Das couves sem carne, nos salve, Senhor. Da fome, nos salve, Senhor. Das jornadas trabalhistas de dezesseis horas, nos salve, Senhor. Das botas furadas, dos fardos carregados em nossas costas.... nos salve, Senhor”.
"E tremerão diante da cólera de Deus". A ameaça do poder religioso
Salmo Vermelho: Igreja e Militares: uma mesma instituição
Salmo Vermelho faz uma crítica à posição política da igreja tradicional, e há duas cenas especiais, pela força que elas têm que mostram isso. No minuto sessenta e sete, depois que os camponeses foram derrotados pela força das armas, um padre, com batina e chapéu militar, celebra a vitória e toma o juramento dos camponeses derrotados, que são obrigados a repetir as palavras: “Juro por Deus que me arrependo do meu juramento socialista e o considero nulo. Comprometo-me a não participar de nenhum movimento dirigido contra a lei e a ordem, e a me manter tranquilo. Se alguém, quem for, tentar violar este juramente, eu o denunciarei à justiça. Juro diante de Deus”. Momentos depois haverá uma grande matança, sem tiros, e só se verá roupas manchadas de sangue, armas e corpos.

Para finalizar as referências à igreja, há uma cena muito simbólica que choca e que é uma provocação. Um homem velho se sacrifica pelos camponeses e comete suicídio. Na cerimônia de seu enterro, os camponeses rezam o “pai nosso”: “Nosso Pai, acima sentado, que seu nome seja santificado porque se preocupa com seu povo. Socialismo, venha a nós o seu reino, aqui no mundo inteiro. Povo, faça a sua vontade e que pela redução dos impostos, nossa existência seja mais suportável. Povo, livra-nos dos opressores dos direitos humanos e não perdoe as ofensas de nossos tiranos porque merecem seu castigo, afogando o direito e a igualdade. Dinheiro, não nos deixa cair mais na tentação posto que por ti, muitos vendem-se, e se convertem em escravos de nossos opressores..”.

Para finalizar a cerimônia, os camponeses jogam na terra sementes enquanto um grupo de jovens (crianças e adolescentes) dançam uma música tradicional muito alegre.

Deixamos para o final três cenas que são a marca registrada de Salmo Vermelho pela beleza da sua realização, seja qual for a ideologia do espectador.

A primeira cena é a das jovens nuas.
Salmo Vermelho

Um oficial entrega a um cadete um revólver, insinuando assim que deve matar os camponeses. Mas o cadete duvida e não sabe o que fazer; então, a câmera, com movimentos lentos, acompanha os passos do cadete e dos camponeses que esperam a decisão do militar. Essa indecisão é alternada com cantos “pro-socialismo” e danças alegres. Enquanto o cadete duvida, um grupo de mulheres, guiadas pela líder, se aproximam aos soldados e os provocam mostrando para eles seus seios enquanto a líder fala: “Com tantos patrões não há liberdade. Com muitos ricos, muitos mais pobres. Com tanto luxo, muita ociosidade. Com tanto passado pobre é o presente. Com muita ignorância, muitos mais tiranos”.
Salmo Vermelho
Logo, três mulheres do grupo ficam nuas e se distanciam do grupo. Os soldados correm gritando, mas as três mulheres se protegem em um abraço e imediatamente os soldados se afastam. As três mulheres permaneceram a maior parte do filme nuas ou utilizando apenas uma saia branca, mas com os seios sempre à mostra.

A atitude das mulheres é das mais puras. Elas celebram com uma dança de alegria e de desafio o fato de que elas sabem o que querem.

Salmo Vermelho
A segunda cena, cujo comentário é necessário, é muito bela devido a sua coreografia e é carregada, mais uma vez, de simbolismo –seja qual for a ideologia do espectador-. O cadete caminha com um revólver sem saber o que fazer. Os soldados a cavalo continuam dando voltas em círculos e o ambiente é tenso; por um momento há um silêncio absoluto e o cadete joga a arma no chão; outro oficial se aproxima, recolhe a arma e a entrega para outro soldado que, sem pensar duas vezes, pega a arma e atira nas pessoas.
O Cadete e suas dúvidas
O tiro
A força
O beijo no cadete assassinado
Aparece, então, uma das mulheres seminuas com as mãos levantadas e a mão direita sangrando. Ela caminha devagar frente aos seus colegas; logo, o militar atira no cadete que não teve coragem de atirar nos camponeses. O cadete cai morto e uma mulher do grupo de camponeses aproxima-se do soldado morto e beija-o na testa. Imediatamente o soldado se levanta e aparece outra vez, em close-up, a mulher ferida na mão, só que no lugar do sangue há uma espécie de flor vermelha de papel. Ela levanta a mão e se aproxima do grupo de camponeses que se unem em uma dança de mãos dadas com outras mulheres que se juntam a um grupo de homens, dançando todos uma música tradicional alegre. A partir desse momento, os homens levam no peito uma flor vermelha como símbolo do sangue, dos ideais socialistas e da luta.

Para finalizar o comentário, não podemos deixar de descrever a cena mais impactante do filme: a matança final de todos os camponeses.

As imagens que prevalece em Salmo Vermelho estão em close-up, porém esta cena longa é um plano geral, com a câmera estática, o que causa um efeito surpreendente.
A matança
A cena começa dando a impressão de que há uma solução do problema quando um soldado reconhece seu erro. Ele fala para os camponeses: “Confesso que por covardia, por cobiça, devido a promessas enganosas, obedeci cegamente aos opressores do povo...” e imediatamente ele se integra aos camponeses. Logo na distância vemos um grupo de camponeses que dançam alegres enquanto os soldados estão ao redor deles, em fila. Por um momento, os soldados se integram à festa dançando todos juntos; porém, momentos depois voltam a suas posições originais e fecham um círculo, deixando no meio os camponeses para, imediatamente, atirarem neles e matarem todos.
O triunfo
O espectador assiste à cena de longe. Sente-se impotente. Não se pode fazer mais nada e, mais ainda, quando minutos depois, os militares e a nobreza celebram o triunfo com uma taça na mão.

Porém, a história não acaba aí. Ainda há tempo para a celebração do triunfo final, mas não vamos entrar nesses detalhes para deixar a curiosidade no espectador.
A história não acaba aí....
Salmo Vermelho é sem dúvida nenhuma um dos grandes filmes de Miklós Jancsó. É uma obra poética onde se conjugam em um corpo único de linguagem cinematográfica a música, a dança e a fotografia, criando uma das obras mais belas do cinema húngaro.
Salmo Vermelho
Nota: As frases textuais dos cantos são das legendas em português da edição brasileira em DVD lançado  pela Lume.

Texto original de Patricio Miguel Trujillo Ortega.

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Um comentário:

  1. Esse filme é um "hair" húngaro, mas mais doido...Eu creio q o filme é dividido em atos, já que há longas cenas sem cortes.

    "As personagens não têm nome. Elas são conhecidas e reconhecidas por seus rostos e suas ações; há, inclusive, algumas personagens que depois de morrer, levantam-se e voltam a andar". É essa a metáfora por trás das lutas de classes, que seres sem rostos, e que não deixarão seus nomes nos livros de história é que ajudam a escreve-la.

    Das cenas, gostei bastante dos momentos em que há um embate entre músicas antagônicas numa mesma trilha sonora, como nos dois primeiros atos, em que, enquanto está sendo tocado uma musica alegre e irreverente, simbolizando o povo, é tocado em seguida, simultaneamente, um violino, com ritmos mais tristes e melancólicos. É tbm interessante citar a adaptação que os camponeses fizeram ao hino da França...

    Gosto da cena em que as três jovens camponesas se despem e caminham de mãos dadas e da cena da "matança". Sobre essa ultima, deve ter sido bem difícil grava-la, pense em todo o trabalho para elaborar os movimentos dos figurantes? E me surpreende o numero de pessoas que participaram da cena...Dezenas, ou até um numero superior a cem atores.

    Como dito anteriormente, um hair hungaro bem doido, uma peça de teatro num sitio distante...E aliás, houve mesmo uma revolta dos camponeses em 1890?

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