Direção: Agnès Varda.
Com: Sandrine Bonnaire.
“Você escolheu a liberdade total, mas você tem a solidão total”.
Estas palavras de um dos
personagens de Sem Teto Sem Lei podem servir como definição de quem é Mona
Bergeron, a protagonista deste filme profundo, forte e um pouco perturbador, da
diretora belga Agnès Varda, uma das precursoras da nouvelle vague francesa dos anos sessenta.
Sem Teto Sem Lei é a
história das últimas semanas de vida de uma jovem andarilha. O filme é como se
fosse um círculo: começa com o descobrimento do corpo da jovem, morta pelo frio
do inverno no sul da França, jogada numa vala, e termina mostrando como ela morreu.
Sans Toit ni Loi - Sem Teto Sem Lei - Mona morrendo de frio |
No final da história, o
espectador não sabe nada da vida passada de Mona; só seu nome. Não temos nenhum
dado pessoal da vida dela até o momento em que ela chegou ao povoado onde
morre. Os únicos dados que sabemos são as impressões das pessoas que se
relacionaram com ela nessas últimas semanas da sua vida e é com essas
impressões que Varda constroi a história de Sem Teto Sem Lei: um
filme objetivo, mas sensível.
Sem Teto Sem Lei: um olhar triste, mas não pessimista |
Quem é Mona Bergeron? - Sem Teto Sem Lei |
Quem é Mona Bergeron?
Por que ela abandonou tudo para
se perder na estrada?
O que ela estava procurado?
Jogada numa vala - Sem Teto Sem Lei |
Minutos antes de morrer |
Com certeza há muitas respostas
teóricas, filosóficas e críticas; porém, um dos méritos de Sem Teto Sem Lei (leia-se
Agnès Varda) é que em momento nenhum ela tenta dar “a resposta” que, de fato, é difícil.
Morreu de frio |
O filme acompanha os últimos
passos da vida de Mona que se nega a responder quando questionada do por quê ela
está na rua. Numa na conversa com uma das pessoas que conhece na estrada, uma
mulher acadêmica lhe pergunta:
“Por que abandonou tudo?” - pergunta uma das pessoas que ela conhece
na estrada. “Porque o champanhe na
estrada é melhor” Mona responde ironizando.
Sans Toit ni Loi - Sem Teto Sem Lei |
Mona é um ser anônimo e as suas
ações, com suas respectivas consequências, são os elementos com os quais se
constroem a história objetiva do filme; a subjetividade é o que pesam os outros
personagens, que também não sabem nada dela.
Para manter essa objetividade,
Agnès Varda dirige seu filme como se fosse um documentário. Ao longo dos 105
minutos misturam-se as imagens dos últimos passos de Mona com os depoimentos de
certas pessoas que mantiveram algum tipo de contato com ela. As testemunhas
falam para a câmera como se ela fosse um repórter que vai recolhendo a
informação dispersa. Desta forma, Varda consegue fazer uma história o mais perto
possível da objetividade porque é impossível fazer uma narrativa sem um pouco
“da alma” do narrador. E o narrador de Sem Teto Sem Lei é uma voz feminina
em off que apresenta a personagem na
segunda tomada geral do filme:
“Como ninguém reclamou o corpo, ele foi para uma vala comum. Ela teve
morte natural. Imagino se quem a conheceu quando criança ainda pensa nela. Mas
as pessoas que ela tinha conhecido recentemente se lembravam dela. Essas
testemunhas ajudaram-me a contar as últimas semanas de seu último inverno. Ela
conseguiu deixar nelas uma marca. Eles falavam dela sem saber que tinha morrido.
Não disse nada para eles. Nem que o nome dela era Mona Bergeron”.
Mona na praia |
O que sabemos de Mona?
Que gosta de música. Tem um
fascínio pela música e aonde vai, sempre quer ouvir música, seja em uma
lanchonete, no carro quando vai de carona, na casa onde está hospedada. Ela
gosta tanto de música que, até mesmo, um dos vagabundos com quem compartilhou
uma casa abandonada e uma cama temia que ela roubasse seu rádio.
Mona tem um fascínioi pela música |
Mas, o que sabemos mesmo é que ela
não gosta de falar dela e ela vive um dia de cada vez. Não planeja sua vida.
Não tem nenhum vínculo com ninguém e também não quer ter nenhum. Simplesmente
está na estrada e anda por onde haja um caminho. Não tem um destino para
chegar. Veste suas roupas velhas e sujas; não se incomoda com a forma como que
as pessoas a olham. Ela simplesmente caminha de um lugar para outro e qualquer
lugar é bom para ela. Convive com todos os tipos de pessoas que aparecem no seu
caminho; chega até mesmo trabalhar quando tem necessidade, mas se afasta e
afasta as pessoas do seu redor.
Porém, o contraditório da
personalidade de Mona é que essas pessoas parecem conhecer um pouco dela e ficam
impressionadas de uma ou de outra forma. O primeiro depoimento sobre ela é um
exemplo. Quando o seu corpo aparece jogado na vala, uma pessoa idosa diz: “Ela tinha um olhar vazio, como um mendigo.
Da maneira como ela olhou para mim, achei que ela foss ume”. (Este
depoimento é significativo porque é misturado com imagens de pessoas limpando
paredes manchadas de vermelho em algum lugar. É uma cena que desconcerta, mas
que no final fará sentido. É mais um elemento da história circular de Mona).
Mona pedindo carona |
Depoimentos das testemunhas |
A construção da história.
O filme começa mostrando o
cenário onde está o corpo da jovem andarilha. A primeira imagem é uma tomada
geral de um campo. Na distância se vê uma fumaça e os galhos de uma árvore que
se mexem. No início, a imagem está parada, mas pouco a pouco a câmera se aproxima, com uma
música suave de violino, numa melodia melancólica, até se ver com claridade um
trabalhador; em seguida, a câmera mostra o perfil do camponês que encontra o
corpo da mulher jogada numa vala. O homem joga as suas coisas e sai correndo
para falar do achado.
Depois que um dos policias afirma
que parece que a mulher morreu de frio, escutamos a voz em off, já reproduzida nas linhas anteriores, e que apresenta o
eixo de filme: “Imagino se quem a
conheceu quando criança ainda pensa nela. Mas as pessoas que ela tinha
conhecido recentemente se lembravam dela”. Desde o começo o espectador já
sabe que não conhecerá nada da vida passada da andarilha e, embora não seja a
temática do filme, fica no ar uma sensação de abandono e desesperança: Quem a conheceu quando criança ainda pensa
nela?
À medida que a voz em off termina a sua apresentação,
começa a história linear das últimas semanas de Mona, com os intervalos dos
depoimentos já mencionados.
Conhecemos a Mona quando ela está
na praia numa manhã fria de inverno, tomando banho. Depois pede carona para um
caminhão e, a partir desse momento, ela passará por diferentes situações de encontros
e desencontros com muitos tipos de pessoas que são fundamentais na construção
da história; porém, destacamos dois em especial.
Mona chega em um sítio onde mora
um ex-professor de filosofia com sua esposa e seu filho pequeno. O lugar é
pobre, mas o casal é trabalhador. Por onde passa Mona há uma paisagem vazia, de
abandono, triste e esta é uma constante no filme. É como se esta paisagem
formasse um todo com Mona. O casal permite que Mona fique uma noite, mas depois
lhe oferece um pedaço de terra para que cultive o que ela disse que gostaria de
cultivar se tivesse uma terra: batatas. Não obstante, o tempo todo a jovem
andarilha não faz nada: deixa o tempo passar e o casal pede para ela ir embora.
Mas, nos monólogos do professor com Mona, pois só ela o escuta, ele lhe diz: “Você escolheu a liberdade total, mas você
tem a solidão total. Sua hora irá chegar se continuar assim, irá se destruir.
Sua direção é a destruição. Se tiver que viver, tem que parar. Meus amigos que
ficaram na estrada estão mortos agora ou então se acabaram: alcoólatras ou
dragados. Porque a solidão acabou com eles, no fim de tudo”.
"Você escolheu a liberdade total, mas você tem a solidão total" |
Este discurso não é moralista e
sem a reflexão de um homem que consegue ver o que acontece com Mona, porém, ela
não pode ou não quer fazer nada. Ou, talvez, as preocupações dos outros não são
as suas preocupações. O ex-professor fala pausadamente; não há amargura nas
suas palavras, mas sem frustração. Mona escuta, mas não discute e, no final das
contas, vai embora.
Ela é livre! Ela é livre?
Mona escolheu a liberdade total e
vive na solidão total. Este encontro é o anúncio do que o espectador já sabe
desde os primeiros minutos do filme: ela está morta. E só ela não sabe ainda que
está morta: mas caminha para isso. Sem pressa.
Não há como confundir esta fala
como um discurso pessimista do filme. Varda deixa simplesmente uma pergunta sem
resposta: o que é ser livre?
O segundo encontro importante é quando
Mona conhece a Sra. Landier, uma acadêmica que um dia lhe oferece carona e
ficam vários dias juntas. Como sempre, Mona é de poucas palavras e o discurso
todo é feito com as perguntas da Sra. Landier quem, depois, quando Mona já foi
embora, quer saber o que aconteceu com ela e pedirá ajuda a um dos seus
colaboradores para tentar descobrir o destino da jovem.
Mona e a Sra. Landier |
Deste jeito é construída a
odisséia de Mona. Encontro após encontro, dormindo em casas em ruínas, em
mansões abandonadas, em sua barraca instalada até mesmo em um cemitério, até o
encontro final com um grupo de vagabundos que a leva ao seu destino final.
A Fotografia.
A imagem de Sem Teto Sem Lei é uma
experiência fascinante pela sua qualidade e por ser um elemento narrativo tão
importante quanto os depoimentos dos que conheceram Mona.
Podemos destacar três tipos de
imagens:
O uso que Varda faz do travelling (“A câmera é montada sobre um
carrinho que se move por trilhos enquanto a tomada é realizada. A técnica é
empregada para se aproximar ou se afastar da ação”) tem um efeito especial em Sem
Teto Sem Lei: a câmera é como um olho que está percorrendo a estrada e
encontra Mona por casualidade, como poderia encontrar qualquer pessoa, e
continua seu caminho. Ou Mona fica para trás ou vai embora que o “olho” (a
câmera) segue seu curso natural.
Há duas cenas marcantes neste
estilo que, além de mostrar a solidão de Mona, é a reafirmação de que ela
caminha por onde tiver que ir, sem destino.
No minuto 13:59, a câmera mostra
um campo e vai se movimentando para esquerda. Ela para quando encontra Mona que
está sentada no chão concertando as suas botas. Há um corte e a câmera mostra
um trator e muito devagar no começo, caminha para esquerda, mostrando uma
parede de pedra, com manchas até chegar a um portão por onde está saindo Mona. A
câmera não se detém e Mona se esconde atrás do muro quando um carro da polícia
passa por lá. A câmera continua com seu movimento constante, o carro da polícia
“ultrapassa” a câmera e esta continua mostrando o muro, até que aparece Mona novamente,
caminhando mais rápido que a própria câmera e ela também a “ultrapassa”. A cena
dura quase dos minutos e é acompanhada por uma música forte, triste, com
instrumentos de corda.
Sem Teto Sem Lei |
No minuto 56.36, há outra cena
com o mesmo recurso. Ela aparece em um terreno baldio. No começo, é uma tomada
geral. No fundo, há construções diversas e ela caminha brincando com um
cachorro. Enquanto ela caminha, a câmera se movimenta para direita e Mona vai
sumindo da cena e a câmera continua seu caminho até ficar parada frente a uma
casa onde há vários pedreiros trabalhando. Há um corte e logo aparece Mona
sentada frente a uma fogueira. Parece triste. Os pedreiros estão trabalhando
atrás dela e a jovem permanece quieta, com seus pensamentos. Há imediatamente
um primeiro plano. Parece que Mona está com frio. Segundos depois escutamos o
depoimento de um dos pedreiros que viu Mona: “Ela surgiu do nada e sentou perto do fogo. Ela parecia estar com frio. Eu
ousaria falar com ela? Eu não sabia se deveria. Meninas que vagueiam é algo
raro. Por estar completamente sozinha desse jeito, deveria ter falado com ela”.
"... deveria ter falado com ela" |
Os outros dois tipos de imagens
constantes do filme são os primeiros planos e algumas tomadas poéticas,
líricas, quase como uma pintura.
Sem Teto Sem Lei é um
grande filme que não perde nada em sua qualidade e em sua profundidade com o
passar do tempo. É uma olhar triste, mas não pessimista.
Texto original de Patricio Miguel Trujillo Ortega.
Proibida sua reprodução total ou parcial de qualquer modo ou por
qualquer meio, sem prévia autorização escrita do autor.
E entre os principais prêmios e indicações
podemos mencionar:
- Leão de Ouro – Melhor Filme. Festival de Veneza, 1985.
- Leão de Ouro – Prêmio OCIC – Festival de Veneza, 1985
- Leão de Ouro – Prêmio FIPRESCI – Festival de Veneza, 1985.
- Melhor Atriz – Prêmio Cesar, 1986.
- Melhor Filme – Sindicato de Críticos Franceses, 1986.
- Melhor Atriz – Sindicato de Críticos de Los Angeles, 1986.
- Melhor Filme – Sindicato de Críticos de Los Angeles, 1986.
- Melhor Filme Estrangeiro – Sant Jordi,1987.
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