Com: Nina Kervel, Julie
Depardieu, Stefano Accorsi.
Direção: Julie Gavras.
A culpa é do Fidel!
foi, sem dúvida nenhuma, um dos melhores
filmes do ano 2007 e hoje, cinco anos depois, não perdeu a vigência que ele tem.
Ainda que o título possa enganar
o espectador que não o viu, o filme conta a história de Anna de la Mesa, uma
menina de nove anos de idade que, de repente, vê seu mundo se desmoronar e
tenta, desesperadamente, reconstruí-lo. Por isso, podemos dizer que A
culpa é do Fidel! é a narração do processo de amadurecimento pelo qual
Anna tem que passar não só na difícil tarefa de entender o mundo dos adultos
ou, mais particularmente, o dos pais dela numa época de profundas lutas
ideológicas, mas de encontrar sua identidade e seu espaço nesse mundo.
A culpa é do Fidel! é um
filme sensível e intenso ambientado entre
os anos de 1970 e 1973 em Paris e a história é contada sob a perspectiva de
Anna; portanto, para entender esta perspectiva, devemos primeiro conhecer as
pessoas que estão ao redor da menina e os problemas que elas têm.
Anna de la Mesa |
O pai de Anna é um jovem advogado
espanhol, atualmente sem emprego, que mora na França há muito tempo. Ele é
descendente de uma família tradicional espanhola que apoiou a ditadura do
general Franco, porém suas ideias são diferentes. A mãe de Anna é uma mulher
que escreve para a revista Marie-Claire
e pensa diferente de seus pais, que vivem comodamente em uma grande
propriedade; não obstante, isso não impede que junto com seu esposo e seus dois
filhos, Anna e François, de cinco anos, morem também em uma casa grande com
todas as comodidades possíveis.
Junto com a sua família, o mundo
de Anna é composto por dois elementos adicionais: a presença da sua babá,
Filomena, uma exiliada cubana que odeia Fidel Castro e todos os comunistas, a
quem ela chama de “barbudos” e que, entre confidências e queixas, conta para
Anna que os “barbudos” tentam roubar o que eles têm e que estão transformando os
pais da menina em “comunistas”. A babá resume seu pensamento em uma frase
única: “A culpa é do Fidel”; Anna,
que escuta e avalia, repete as mesmas palavras. Daí o título do filme!
Ana e seus costumes |
O segundo elemento que compõe o
mundo de Ana é a escola onde ela estuda: uma escola religiosa, de freiras, só
para meninas e com uma educação tradicionalista. Ana gosta da sua escola e das
suas amigas, ainda que alguns dos seus costumes sejam diferentes na sua casa. Logo
comentamos uma cena marcante da diferença destes costumes.
Os pais de Anna e suas novas atitudes |
Mas agora falemos de uma cena
marcante que demonstra como é o mundo na visão de Anna e que está prestes a
desmoronar. A cena acontece no começo do filme. É o dia do casamento da tia
materna de Anna e a celebração é na casa dos avós maternos. Por um lado, vemos
Anna sentada em uma mesa grande junto com outras crianças. Ela está ensinando
as crianças a comerem fruta com garfo e faca. Anna se comporta de uma maneira
rígida e excessivamente formal, seguindo o padrão de comportamento com o qual
está acostumada, seja na escola ou na casa dos avós, e do que ela gosta. Por
outro lado, em uma conversa no meio da festa com a sua mãe, ela descobre que
seus pais quando se casaram, não tiveram esse tipo de festa porque eles não
concordavam com esses costumes.
Ficam, então, já estabelecidas as
duas linhas de comportamento que vão guiar a história do filme e que caminharão
de forma paralela, tentando encontrar uma brecha onde elas possam se juntar.
Tarefa difícil para as duas linhas paralelas.
Anna e seu irmão com lembranças da viagem dos pais a Chile |
O desmoronamento do mundo perfeito
de Anna começa com a presença da sua tia espanhola já no dia da festa. Ela e a sua
filha fugiram da Espanha para França logo depois que seu esposo, opositor ao
regime do General Franco, foi assassinado. O pai de Anna sente que deve fazer
alguma coisa não só pela sua irmã, mas também por ele mesmo; portanto, além de
acolher a sua “família”, junto com a sua esposa decidem rever seus valores e,
de alguma forma, recuperar o “tempo perdido” nessa vida “burguesa” que eles
levam, sendo que há injustiças no mundo e que eles podem fazer alguma coisa.
Os pais de Anna comprometem-se
com o apoio político nas eleições do presidente Salvador Allende do Chile e
viajam para trabalhar pela causa socialista do futuro mandatário. Logo
acompanharão as eleições pela televisão e, da mesma forma, a queda e morte do
presidente chileno. Por outro lado, a mãe de Anna deixa de trabalhar na revista
Marie-Claire e dedica todo seu tempo
para escrever um livro em favor das mulheres e do seu direito pelo aborto.
Anna e seu pai no começo do filme |
Estas atitudes dos pais de Anna
trazem como consequência a mudança radical na vida da família. Eles têm que
sair da casa grande onde moram e vão viver em um apartamento pequeno, sem
jardim. A ausência do jardim na casa é a visão que Anna tem o tempo todo e que ela
sempre traz à tona, a falta deste espaço físico que é vital na sua vida. A
falta dele para ela significa “pobreza”.
Os filhos perdem as comodidades
que tinham o os próprios pais não têm mais tempo para compartilhar com seus
filhos. Como já não podem mais pagar à babá Filomena, ela vai embora e passarão
pela casa muitas mulheres exiliadas dos mais diversos lugares que trabalharão
como babá apesar de não terem as caraterísticas ideais para esse trabalho. Isso
implica em uma mudança radical nos hábitos alimentares da família. Por outro
lado, o apartamento sempre está cheio de pessoas estranhas. Homens “barbudos”
que falam, fumam e pensam no futuro socialista do mundo, onde a riqueza seja
para todos. Mulheres que vão conversar com a mãe de Anna (inclusive aos domingos)
para o livro e cada uma tem uma história mais trágica que outra.
Tanto Anna quanto os "barbudos" tentam se convencer mutuamente |
Por todas as questões mencionadas
anteriormente, Anna começa a se sentir perdida na sua própria casa. Por
exemplo, o domingo que era o dia da família, já não é mais, e no lugar de estar
com seus pais, muitas vezes ficam no apartamento sem a presença deles ou com
gente desconhecida. Isto provoca em Anna uma atitude de rebeldia em relação aos
seus pais e inicia a sua luta para recuperar seu mundo.
O filme é narrado, como já foi dito,
sob a perspectiva de Anna, do jeito como ela vê os “barbudos”, os seus pais, seu
irmão, a escola. É interessante destacar o posicionamento da câmera. Ela está
muitas vezes ao nível dos olhos de Anna, justamente para reforçar a visão dela.
Podemos mencionar duas cenas como exemplo deste recurso com a câmera. A
primeira é quando Anna vê pela primeira vez os “barbudos”. Ela acorda no meio
da noite, e ao sair de seu quarto, no lugar de seus pais, encontra a sala cheia
de “barbudos”. O espectador vê a cena sob a posição física de Anna, com seu
olhar inquieto, assustado, mas ao mesmo tempo tentando se manter firme no seu
espaço. Outra cena é quando os pais levam Anna a uma manifestação pública na
rua. No meio de tanta gente que grita e carregam cartazes, a menina só vê
pernas, braços e gritos. Quando a manifestação é dispersa pelos gases da
polícia, a câmera fica ao nível de Anna e só veem os gases, os gritos, os
empurrões.
O filme é narrado de forma linear
e o tempo passa rápido. As lutas políticas e ideológicas dos pais de Anna são
contadas somente através das palavras deles e das reuniões que fazem no
departamento. A história se centra mais na luta de Anna para recuperar seu
mundo no confronto direto com seus pais que nas questões ideológica dos pais.
Pode-se resumir a luta de Anna d
varias maneiras: ela acha que a mudança de uma casa grande para uma casa
pequena, a falta de jardim, a pouca variedade do cardápio, a troca constante
das babás; tudo isso significam que eles estão pobres. Então, ela começa a
economizar energia elétrica: desliga todas as luzes que estão acesas sem
necessidade e inclusive a água quente, obrigando as pessoas da casa a tomarem
banho em água fria. Constantemente enfrenta seus pais exigindo a volta à
“normalidade” e rejeitando as ideias deles. Nega-se a trocar de escola e ainda
que obrigada por seus pais a não assistir mais às aulas de religião, ela faz
questão de manter os ensinamentos que aprende na escola.
Percebe-se que os pais tentam ser
coerentes com as suas ideias e, tentam mais ainda, transmitir essas ideias para
seus filhos. Só que Anna não tem a maturidade para entender o que seus pais lhe
propõem. Dilema que o irmão de Anna não tem, justamente pela diferença de
idade.
Há algumas cenas marcantes nesta
luta de Anna contra seus pais e o modo de vida que eles têm que vale a pena
mencionar.
Anna vê seu mundo se desmoronar |
Uma das mais interessantes e
engraçadas é quando Anna acorda no meio da noite e encontra-se rodeada pelos
“barbudos”. Ao se deparar com um grupo de gente “barbuda” literalmente, Anna
tem medo, mas se controla e é capaz de desafiar-los. Os “barbudos” amigos dos
pais de Anna tentam ser carinhosos e fazem questão de lhe explicar o problema
da distribuição da riqueza. Anna escuta sem perder uma palavra para logo
refutar todas as ideias deles defendendo o poder do dinheiro e da compra e
venda. A cena é engraçada principalmente pela seriedade com que tanto os
“barbudos” quanto Anna tentam se convencer mutuamente.
Porém, é necessário lembrar que A
culpa é do Fidel! não é um filme político nem ideológico. Não estão em
questionamento as ideias revolucionárias dos anos sessenta e setenta, assim
como também não estão em discussão as ideias reacionárias de Anna. O filme é a
história de Anna que tenta entender as mudanças que acontecem ao seu redor;
tanto é assim, que há uma cena que mostra que ela entende perfeitamente algumas
ideias de seus pais, justamente aquelas com as quais ela cresceu desde
pequenina e que não sofreram nenhuma alteração com a chegada dos “barbudos”.
Anna fala para sua amiga de questões sexuas com naturalidade |
A melhor cena que explica isto acontece
um dia em que a melhor amiga de Anna vai passar a noite na nova casa dela. A
amiga não se sente à vontade no novo ambiente e pior ainda com a comida que a
“babá” lhes oferece. Porém, o ponto crítico advém quando as duas garotas estão
no banho com a porta aberta e a amiga de Anna vê pelo espelho que o pai da sua
amiga está no seu quarto se trocando de roupa. Ela nunca tinha visto um homem
nu e não consegue dormir. Não obstante, para Anna ver seu pai nu é o mais
natural e não entende porque a sua amiga fica tão assustada pelo fato de ter
visto o pênis de seu pai. No dia seguinte, é muito engraçada a forma como a mãe
da amiga de Anna reage na escola ao reclamar sobre o que tinha acontecido.
Percebe-se uma mulher assustada que reprime a sua filha em contraste com a
naturalidade com que Anna vê seu corpo e o dos seus pais, sem preconceitos, sem
conflitos.
A culpa é do Fidel! é um
excelente filme com diálogos bem pensados. A atuação de Nina Kervel é magnífica
em um papel difícil que ela sabe levar do começo ao fim. A recriação do ambiente
do começo dos anos setenta está bem feita e como amostra podemos mencionar certos
detalhes como a presença de uma das músicas símbolo da era de Salvador Allende,
quando os pais junto com os “barbudos” cantam “Venceremos” de Inti-Illimani ao
celebrar o triunfo de Allende.
No final, Anna aprenderá muito
sobre ela mesma e sobre a sua família e terá que decidir qual é o espaço que
lhe pertence. É uma escolha que só ela pode fazer e ninguém mais. Não importa
se seu pai fica bravo e chateado porque ela continua lendo as histórias em
quadrinhos de Mickey Mouse que, segundo ele, é um “símbolo fascista do
imperialismo”; o importante é que Anna tem que resolver a difícil tarefa de
entender o mundo, que nem sempre é aquele com o qual sonhamos.
A culpa é do Fidel! é um
magnífico drama com muita doses de humor em uma não sempre relação agradável
entre pais que têm um ideal e filhos que não querem abrir mão de seu mundo.
Vale à pena vê-lo e revê-lo.
Texto original de Patricio Miguel Trujillo Ortega.
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