O filme que assistimos...

Você encontrará neste espaço comentários e analises de filmes de todas as épocas. Uma excelente oportunidade para aprender além do cinema.

Patricio Miguel Trujillo Ortega


28 de fevereiro de 2012

Russkiy Kovcheg - Arca Russa

Russkiy KovchegArca Russa. 97 minutos. 2002. Fantasia. Rússia.

Direção: Aleksandr Sokúrov.

Arca Russa do cineasta Aleksandr Sokúrov é uma experiência cinematográfica única que deu certo.

É um círculo que rompe o tempo e mistura o presente com o passado numa visão intimista dos 300 anos da história Russa que antecederam a revolução bolchevique; é um círculo perfeito de 360 graus que não tem principio nem fim.

Durante 90 minutos, o espectador percorrerá 36 salas do histórico palácio Hermitage em São Petersburgo; porém, a câmera nunca pára porque o filme foi feito em um único plano-sequência: não há nem cortes nem montagens. A câmera simplesmente não pára de andar. Desde o primeiro segundo até o último segundo dos 90 minutos, a câmera estará em movimento, andando por grandes salões, escadas estreitas e escuras, escadas luxuosas, teatros, pátios, galerias de arte, se aproximando e se distanciando dos objetos, das pessoas, girando por cada canto do palácio que tem história para contar.

O esforço desta produção foi gigantesco: tudo foi filmado em exatamente 90 minutos seguidos e participaram mais de 2.000 figurantes e atores. Foram meses de ensaio e no momento da filmagem, ninguém podia errar. Nada podia dar errado e o projeto deu certo, ainda que no festival de Cannes em 2002 não tenha ganhado nenhum prêmio; porém, isso não tira os méritos e acertos do filme.

Chegada dos convidados
O homem misterioso olha através de uma janela
Arca Russa deu certo não só pela ideia original da filmagem – graças às novas tecnologias pode ser feito – mas, sim pelo roteiro que tenta contar a história do palácio Hermitage ou, pelo menos, a visão de Sokúrov da história do povo russo.

Muito tem se escrito e debatido sobre as questões ideológicas do cineasta e da visão que ele tem da Rússia dos czares e as consequências da revolução vermelha. Porém, não vamos perder tempo nestas discussões que vão mais além da obra cinematográfica –onde os críticos parecem tentar mostrar mais erudição que outra coisa-, pois há uma verdade indiscutível: toda obra de arte é carregada de uma ideologia, de uma ideia, seja qual for e o valor da obra não está nessa ideologia e sim em como a arte é feita e como esta pode transcender seu tempo.

Os Czares e o teatro
A Arca Russa é um filme que podemos catalogar do gênero “fantástico” porque nele se misturam elementos da vida real do passado russo com o presente, mais uma espécie de personagens “fantasmagóricos” que criam uma atmosfera única onde se faz uma reflexão da “grandiosidade” e, ao mesmo tempo, de uma decadência melancólica do povo russo; tudo isso, numa ruptura temporal: o filme começa com a chegada de convidados para uma festa na época de Pedro I o Grande e termina com a saída desses mesmos convidados, só que em outra época: a de Nicolau II e uma nostalgia pelo fim da era czarista.

Por tanto, apesar de o filme contar uma história (com a presença garantida do Czar Pedro I o Grande, a Czarina Catalina II a Grande, o Czar Nicolau II, Anastásia, entre outros), esta é fragmentada, se mistura e se inventa. Há cenas que para o espectador que não conhece algo da história russa ficam escuras, enigmáticas. Outras, são explicadas e, mais algumas, simplesmente estão aí, como parte da coreografia orquestrada por Sokúrov. De todas formas, nada disto impede que se possa desfrutar da cenas, dos simbolismos e da própria imponência do palácio Hermitage.

Portas abertas do Hermitage
A grandiosidade do palácio
O filme começa nos apresentando duas personagens. A primeira é uma pessoa, aparentemente contemporânea, que não sabe quem é e parece estar perdida, vagando no tempo. Seus olhos são a câmera e é ela quem vai mostrar o que acontece durante os 90 minutos. Esta é uma proposta interessante que mostra que o filme é intimista, subjetivo. Este narrador-câmera parece ser uma personagem fantasmagórica que simplesmente não sabe o que está fazendo. Ele diz: “Abro os olhos e não vejo nada. Onde estou?” Mas isto, também, parece que não o incomoda em absoluto.

E junto com ele, aparece um europeu, vestido de preto, que também não sabe o que está fazendo aí e se surpreende de falar russo. Somente ele enxerga ao narrador-câmera e juntos iniciam a sua jornada pelo Hermitage. Ao mesmo tempo em que este homem misterioso é um símbolo para entender parte do discurso inicial do filme, é uma ajuda para conseguir o efeito do plano-sequência, pois em mais de uma oportunidade ajudará a abrir e fechar uma porta, uma parte da história.

Arte e ruuptura temporal




A história do filme pode ser divida em três partes.

A primeira parte ocupa mais ou menos uns dez minutos. Começa com muita gente que chega para uma festa e o homem misterioso fala de Pedro O Grande que levou a Europa para a Rússia. Entre outros comentários falará também que “os russos estão sempre a copiar porque não têm idéias próprias”. Nestes dez minutos o espectador vê a alegria e as conversas dos convidados que sobem umas escadas. Os corredores são escuros, estreitos e vamos tentando identificar algumas cenas que aparecem e, principalmente, tentando entender o papel do homem misterioso.

Podemos dizer que a segunda parte do filme é até o minuto 45, aproximadamente. Neste tempo, ambos personagens percorrem por corredores, salas, salões, escadas e o homem misterioso vai discursando sobre a Europa, os czares, as pinturas. Esta segunda parte é rica em detalhes artísticos e na grandiosidade do palácio. Passamos por muitos corredores luxuosos, onde o próprio homem misterioso se admira da beleza. Mas, o forte mesmo desta segunda parte é a presencia da arte. Há muitas salas onde se expõem quadros dos maiores artistas da Europa. Um aspecto interessante nesta “aula de arte” é como o personagem interage com os visitantes do Hermitage. Em algumas oportunidades ele parece ser invisível: ninguém percebe a sua presença. Em outras oportunidades, ele conversa com os visitantes e chega até provocar a ira destes. Como falamos no começo: o tempo na Arca Russa não existe: o tempo, o espaço, e as pessoas compartilham um mesmo lugar, por mais paradoxal que isto possa parecer.

Depois de mais de quase 40 minutos de ter percorrido o palácio e de ter apreciado grandes obras de arte, como as do El Greco, chegamos na terceira parte do filme, na que o contato do espectador é, basicamente, com os czares.

No minuto 46, a câmera mostra os detalhes de uma pintura e logo desce até os pés do homem misterioso. Enquanto acompanhamos seus passos, só se escuta o barulho de seus andar que transcorre de um piso de madeira até chegar a um outro de mármore, tudo de branco. Ele lembra, então, que houve um incêndio e conversa com o narrador-câmera sobre “a convenção” que durou 80 anos. Ele pergunta sobre o atual tipo de governo, enquanto passeiam rapidamente pelo lugar algumas figuras de séculos atrás até que alguns militares expulsam da sala o homem misterioso.
Há uma referência a revolução de outubro e a quantidade de anos que durou o novo governo sob a bandeira da URSS, fazendo um contraste com o esplendor e magnificência do palácio da era czarista. Como falamos anteriormente, é a visão intimista do diretor do filme.

No minuto 50, primeiro há uma referência à guerra mundial e à quantidade de mortos contra a Alemanha, ao entrarmos em uma sala fria onde só há molduras de quadros e um homem que trabalha aí. “Na Rússia, diz-se que a liberdade não tem preço”- disse o europeu logo depois de saírem da sala.

Enquanto eles conversam de que todos os czares foram tiranos, a câmera nos leva a um salão luxuoso onde eles encontram uma mulher que acham que é Catarina II, que é chamada de benfeitora e que é cumprimentada por algumas crianças. Depois, a mulher sai para um pátio que está coberto todo de neve. A mulher, e um homem que está com ela, correm para se distanciarem rapidamente do homem misterioso. Quando a mulher e o homem estão longe, o nosso “guia” encontra uma porta aberta que o leva a um salão onde há um grupo de moças com roupas antigas e máscaras.

 
 

Logo depois, o homem misterioso entra num salão que é o Palácio de Inverno onde Nicolau I recebeu uma desculpa dos emissários persas, em respeito ao assassinato de diplomatas russos. Ele comenta sobre os uniformes, o luxo, o império, o poder. A câmera caminha por entre os soldados enquanto se escuta o discurso do neto do Xá e logo a câmera percorre devagar, pela lateral do salão, onde há homens uniformados e mulheres elegantes, mostrando os detalhes de roupas, os rostos, até que ele é expulso do lugar. Entra então numa sala onde será feita a recepção. O europeu fala de Stass, o arquiteto que não era ruim. Ele vê a porcelana de Sévres que se está preparando na mesa. A câmera mostra os detalhes luxuosos desta porcelana. Daí, ele é novamente expulso e entra numa sala grande e escura e se faz o comentário: “A monarquia não é eterna”.


 

Agora estamos no tempo presente, onde escutamos a conversa de três pessoas sobre a preocupação do futuro do Hermitage. Nosso homem misterioso comenta: “Todos podem ver o futuro, mas ninguém se lembra do passado”.
Todos podem ver o futuro, mas ninguém lembra do passado
O comentário não é dito à toa. É uma verdade dos tempos atuais que coloca a humanidade em xaque. Olhar o passado só como um meio de recuperar a nostalgia é sinônimo de estar preso num lugar distante que é impossível recuperá-lo. Mas, olhar o passado para aprender dele é outra história.

O filme termina com um discurso fotográfico nostálgico e sentimental, muito bonito. Primeiro há um encontro com a princesa Anastásia e com a sua família. Belo contraste da alegria da jovem Anastásia e suas amigas com a preocupação que marca o rosto da mãe dela. Depois de assistir a uma refeição da família real, estamos num grande salão onde se celebra um belíssimo baile a câmera, como sempre, tenta mostrar os mais diversos detalhes. No final do evento, nos encontramos com os convidados que chegaram no começo do filme, quando se falava de Pedro I o Grande. Os convidados  vão embora e ainda que o ritmo a partir desse momento seja devagar, o efeito é forte e nada cansativo nos quase dez minutos que acompanhamos a saída das pessoas da festa em meio de um grande silêncio.

Finalmente há um fundo musical melancólico enquanto o homem misterioso se aproxima de uma janela com vista ao mar e comenta que “estamos destinados a viver para sempre”.
A Arca Russa é um belo filme, ainda que haja muitas dúvidas em relação a algumas cenas escuras e que a visão intimista do diretor não seja do agrado de todos; porém, o filme é uma grande obra de arte que vale a pena ver e rever, como o círculo sem começo nem fim que é a própria história.

Texto original de Patricio Miguel Trujillo Ortega.

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