Com
Jeanne Moreau.
Direção
de François Truffaut.
A
noiva estava de preto é uma história envolvente de amor e vingança. É a
história de Julie, uma mulher que, muitos anos depois de ter visto seu marido
ser assassinado justo no dia do seu casamento, decide se vingar de cada uma das
pessoas que destruíram o seu sonho de viver com o amor da sua vida.
Esta
história de amor e de ódio é um parêntese na longa e exitosa carreira
cinematográfica de François Truffaut que fez, com sucesso, uma incursão no
cinema de suspense no melhor estilo Hitchcok. Truffaut não só adaptou o romance
de Cornell Woorich, mas utilizou uma riqueza de recursos para fazer deste filme
uma experiência inesquecível, assim como também uma amostra de até aonde podem levar
as ações frias e calculistas de uma pessoa tomada pelo ódio.
Jeanne Moreau: uma grande atuação como Julie Kohler |
Quem
é Julie Kohler?
As
primeiras cenas de A noiva estava de preto são rápidas e confusas; o espectador fica
perdido por um instante e tenta entender o que está vendo: primeiro, o grito de
uma mulher que tenta se jogar por uma janela; depois, a imagem de uma mala que está sendo arrumada; finalmente, essa mesma mulher, vestida de preto, mostra segurança
e tranquilidade ao se despedir da sua mãe e afirmar que tem certeza do que está
fazendo; ela caminha pela rua acompanhada de uma criança rumo à estação de
trem, finge que vai embora da cidade e, depois, com calma, lê as anotações de
um caderno.
Essa
mulher, segundos antes de cometer seu primeiro crime, diz a sua vítima: “Sou Julie
Kohler” e, imediatamente, a empurra pela varanda do prédio e a câmera acompanha
em diversos ângulos a queda do homem que morre sem saber o porquê.
O
mistério já está em andamento: até esse momento transcorreram mais de vinte
minutos e o espectador ainda não descobriu qual é a trama do filme e,
principalmente, quem é essa Julie Kohler, agora toda vestida de branco. Fica a
dúvida de qual é a relação do assassinato com as primeiras cenas do filme.
A noiva estava de preto |
Porém,
Truffaut vai revelando e construindo, com maestria, o quebra-cabeça da
personalidade de Julie Kohler até que, muito depois, quando já se sabe quem ela
é, só espera-se o desenlace do plano que ela elaborou até os últimos detalhes
para levar a cabo a sua vingança e, de alguma forma, o espectador torce para
que tudo dê certo com ela, pois ainda que ela deixe de ser vítima e transforme-se
em carrasco de seus inimigos, sua personalidade é magnética.
As
personagens.
Mas
a pergunta ainda está sem responder: quem é Julie Kohler? A resposta está na
revelação das suas cinco vítimas.
Bliss é o primeiro a
morrer. Ele é um homem mulherengo que está prestes a se casar; porém, a única
informação que temos da sua personalidade é por meio da conversa que ele tem
com um amigo que chega ao seu apartamento quando ele está se preparando para
sair. Assim, sabemos que ele vê as mulheres como um simples objeto de seu
desejo sexual e que já teve muitas aventuras; além disso, parece que ele não
liga para as emoções das suas conquistas.
A
morte de Bliss não acontece como Julie Kohler queria; porém, ela mostra que é
fria, decidida e que sabe improvisar. Ela tenta entrar no apartamento de Bliss,
mas o porteiro não o permite; ela faz de tudo para enganar o porteiro, mas ele
não se deixa iludir por ela. Então Julie aproveita, mais tarde, uma festa que
há no apartamento de Bliss para entrar e matá-lo no meio da festa de seu
noivado sem que ninguém perceba.
Julie e Bliss |
A
segunda vítima é Coral. Com a sua morte,
Julie revela ser uma pessoa que está segura do que faz e que controla suas
emoções totalmente. Ela é observadora, detalhista, calculista e sabe se
aproveitar das fraquezas dos outros para seu propósito.
O
aspeto interessante da morte de Coral é que o espectador descobre a
personalidade dele por meio das observações feitas por Julie. Para planejar a
morte dele, ela entra no apartamento dele no momento em que está presente a
porteira do prédio e, fazendo comentários e perguntas rápidas, descobre os hábitos
de Coral e, desse jeito, prepara uma morte agónica para sua vítima.
É
com a morte de Coral que o espectador fica sabendo que Julie “é a noiva” e alguns
detalhes são revelados sobre a morte do seu marido. Coral, diferente de Bliss,
sabe por que está morrendo e luta desesperadamente pela sobrevivência; porém,
Julie é mais forte que seu rival e seu plano é tão perfeito que a vítima não
pode fazer nada, pois Julie está decida em matar os cinco homens culpáveis por
terem destruído o grande amor da sua vida.
Julie espera até ver Coral morto |
O
terceiro crime revela outro lado da personalidade de Julie. Além de ser uma
pessoa fria para matar, é cruel e não permite que nada se interponha em seu
caminho, embora em um momento determinado demonstre que há um lado sensível nela
e que ainda não se deixou dominar totalmente pelo ódio e seu desejo de vingança.
Morane, Julie e Cookie |
Julie inicia encurrala Morane |
Morane é um homem
casado que tem um filho, Cookie. Sem
nenhum escrúpulo, Julie engana a criança de cinco anos para saber os detalhes
necessários da vida de seus pais para organizar o plano da sua vingança. E com
muita astúcia não só consegue que a mãe da criança tenha que se ausentar da
casa, mas que Morane a deixe entrar em seu lar, acreditando que ela é a
professora de seu filho.
Uma
vez que está dentro da casa, Julie trabalha ardilosamente até conseguir que Morane
morra de uma maneia lenta, sufocante e angustiante. Porém, quando a professora
de Cookie é acusada de ter cometido o crime, Julie mostra seu lado “humano” e
encontra um jeito de inocentá-la.
A
morte de Fergus, o pintor, talvez
seja a mais interessante do filme porque não é simplesmente mais uma vingança
satisfeita, mas sim a transformação de Julie que passa a ser a “musa”
inspiradora do pintor. Julie, por primeira vez desde que iniciou a sua vingança,
encontra-se em uma situação na qual corre o risco de perder o controle, pois
ela não pode manipular todas as emoções de Fergus como o fez com as de Morane e
Coral. A relação que se estabelece entre ela e o pintor é intensa e Truffaut
trabalha este relacionamento com uma agilidade de quadros e situações que
parece, por um momento, que Julie vai perder finalmente o rumo das suas ações;
porém, chega-se ao clímax quando ela assiste propositalmente ao enterro do
pintor, sabendo que será reconhecida e detida pela polícia.
Mas
esta ação que parece ser um ato irresponsável para alguém que teve o cuidado de
não deixar nenhuma pista em cada uma das suas vinganças, revela-se como a
estratégia perfeita para se aproximar de Delvaux,
o quinto homem que participou, assim como os outros, da morte do marido de
Julie. Deste jeito, confirma-se a ideia que temos de Julie: uma mulher fria,
dominada pela sede de vingança, que já não tem outra razão para viver, que não
seja matar os que destruíram sua felicidade.
Os
recursos de Truffaut.
O
filme é rico em recursos cinematográficos que fazem desta obra uma experiência
única na carreira de Truffaut; porém, nós queremos destacar dois elementos
interessantes.
O
primeiro refere-se ao uso da câmera parada quando Julie prepara-se para matar
Delvaux. Ele é a única personagem que foge das mãos e do planejamento frio e
calculista de Julie Kohler. Delvaux é apresentado como um homem sem escrúpulos
e que tem problemas com a polícia pelos negócios ilícitos nos que está
envolvido; por isso, a aproximação de Julie não é tão fácil como foi nos casos
anteriores e ela deve vencer obstáculos perigosos para cumprir seus objetivos.
E, de alguma maneira, o uso da câmera parada é perfeito para mostrar a tensão e
o próprio perigo aos quais Julie está exposta nas duas oportunidades em que
Delvaux se confronta com a morte sem saber o que está acontecendo.
A noiva estava de preto: câmera parada no ferro velho |
A morte de Delvaux e a câmera parada |
Na
primeira oportunidade, Julie chega ao lugar do trabalho de Delvaux, que é o
dono de um ferro-velho e, quando se prepara para matá-lo, a câmera permanece
parada, atrás de Julie, criando uma imagem em profunda perspectiva. Delvaux
está longe de Julie e não se aproxima. Essa perspectiva dá a sensação de que Julie
pode se transformar em vítima, pois o homem que ela quer matar é desconfiado
por natureza. O mesmo recurso é utilizado quando Julie está na cadeia e
consegue, finalmente, chegar perto de Delvaux que também está detido. A câmera
permanece parada e deixa que a personagem se distancie e desapareça da cena e
que a história continue fora dos olhos do espectador.
Julie se aproxima de Cookie... A câmera em movimento |
O
outro recurso é a utilização da câmera em movimento quando Julie se aproxima de
Cookie, o filho de Morane, que sai da escola e vai para a sua casa. Os olhos de
Julie convertem-se na câmera e acompanha todo o percurso do menino da escola
até sua casa. A criança olha para trás para ver quem o está seguindo, porém o
espectador só vê o que os olhos de Julie querem ver. Com este recurso, transmite-se
durante o longo percurso de Cookie a sensação que ele está em perigo. A cena é
longa e, a cada passo da criança, a tensão aumenta.
Não
podemos terminar sem mencionar o uso da “Marcha Nupcial” como um “leimotive” ao
longo da sequência quando o espectador conhece, finalmente, a história completa
de como foi a morte do esposo de Julie; além disso, a cena da saída de Julie e de
seu marido da igreja e de como ele morre, transforma-se em um tema constante
que aparece em fragmentos repetidos, sob diferentes perspectivas, o que aumenta
a tensão e explica a dor e a vingança de Julie.
A noiva estava de preto |
A noiva estava de preto |
A noiva estava de preto |
A
sedução: um passo para a vingança.
Ainda
que a relação de Julie com o pintor Fergus seja um dos pontos mais altos do
filme pela repentina paixão que tem o pintor por sua assassina, há que destacar
o processo de sedução fatalista que Julie exerce em Coral.
Coral
é um homem que está em decadência e se deixa seduzir, acreditando que ele não
perdeu seu charme. Ele está convencido de seu antigo poder, de quando pertencia
a um grupo de amigos “amantes das mulheres e da caça”, sem perceber que ele se
transforma na “caça” e, nesse sentido, a sua morte é muito significativa; tanto
é assim, que das cinco mortes, esta é a mais demorada e o espectador não perde
nenhum detalhe. O sedutor sucumbe frente à sedução.
A
noiva estava de preto é uma experiência única na cinematografia de
Truffaut e ainda que não seja o melhor filme de suspense, não se podem negar os
méritos desta obra magnífica que ganhou o National Board of Review, USA em
1969.
Para
quem ainda não conhece o cinema de François Truffaut, ele é um dos cineastas
que iniciou o movimento cinematográfico francês conhecido como Nouvelle Vague, o movimento que mudou a
forma de fazer cinema na França nos anos sessenta e que tem influído aos
grandes cineastas do mundo. Truffaut (1932 – 1984), com seus mais de vinte
filmes, é uma das mais influentes figuras do cinema e A noiva estava de preto é
uma ótima contribuição ao cinema do suspense.
Texto original
de Patricio Miguel Trujillo Ortega.
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autorização escrita do autor.